Nas operações interestaduais, microempresas e empresas de pequeno porte optantes pelo Simples Nacional não precisam recolher diferencial de alíquota de ICMS. Segundo a Justiça, a obrigação, imposta pelo governo paraense no ano passado, anularia o estímulo fiscal garantido pela Lei Complementar 123/2006, que regula o regime unificado de pagamento de tributos federais e estaduais. O entendimento levou o Tribunal de Justiça do Pará a suspender a cobrança, em relação a uma empresa optante pelo Simples, da antecipação do imposto na entrada de mercadorias para revenda no estado.
A decisão repete o que a Justiça de primeiro grau já havia dito no ano passado em relação a 14 associações que representam pequenos empresários no Pará. Em dezembro, as Câmaras Cíveis Reunidas do TJ-PA beneficiaram pelo menos sete mil empresas com acórdão que as desobrigou de recolher o diferencial nas barreiras fiscais de entrada de mercadorias.
O caso foi levado em fevereiro ao Superior Tribunal de Justiça, e em seguida ao Supremo Tribunal Federal, em um pedido de Suspensão de Segurança feito pela Procuradoria-Geral do Estado, que alegou risco de lesão à ordem e à economia públicas. Para o ministro Gilmar Mendes, no entanto, havia risco de “lesão à economia pública não na manutenção da decisão impugnada, mas na suspensão de seus efeitos, haja vista que o referido aumento abrupto na carga tributária não parece, a priori, compatível com as finalidades do Simples Nacional, com consequências gravosas ao funcionamento das micro e pequenas empresas”. Em março, o ministro rejeitou o pedido de suspensão do acórdão do TJ-PA.
Castelo de cartas
A antecipação do ICMS é prática comum dos estados, e já foi declarada constitucional pelo Supremo Tribunal Federal em 2007. A cobrança do diferencial de alíquotas na entrada de mercadorias vindas de estados com ICMS mais alto também é regular, por estar prevista no artigo 155 da Constituição Federal, nos incisos VII e VIII. O intuito é dividir o imposto entre os estados, já que fica concentrado nas regiões Sudeste e Sul, onde a tributação é maior.
No entanto, a CF só permite a cobrança do diferencial sobre a entrada de bens para uso e consumo ou para incorporação ao ativo permanente das empresas, já que a Constituição é específica quanto à aplicação a bens e serviços destinados ao consumidor final, cuja tributação, na prática, já terminou no estado de origem.
O mecanismo criado no Pará colocou no mesmo balaio a antecipação e o diferencial de alíquotas, mas não restringiu o imposto cobrado na barreira a mercadorias destinadas ao consumidor final. Ou seja, ainda que destinadas à revenda, que gera recolhimento no estado, as mercadorias sofrem também tributação sobre o diferencial. A diferença do imposto causada pela variação das alíquotas deve ser recolhida até dois meses depois do registro da entrada no estado — sendo a mercadoria revendida ou não.
Para uma empresa sob regime periódico de apuração, o recolhimento a maior gera crédito de ICMS, que pode ser recuperado na outra ponta. O mesmo não acontece com optantes pelo Simples Nacional, proibidos de se creditarem de tributos não cumulativos. No ano passado, as micro e pequenas empresas foram incluídas na lista de obrigadas a recolher o diferencial antecipadamente, com a publicação do Decreto 1.717 pelo governo estadual.
A norma aproveitou uma brecha aberta pela Lei Complementar 128, de 2008, para alterar o Regulamento do ICMS. A lei federal incluiu o parágrafo 5º no artigo 13 da Lei Complementar 123/2006, que regula o Simples. “A diferença entre a alíquota interna e interestadual (…) será calculada tomando-se por base as alíquotas aplicáveis às pessoas jurídicas não optantes pelo Simples Nacional”, diz o novo dispositivo, que deu ao Comitê Gestor do Simples a “possibilidade” de disciplinar as condições do regime de antecipação.
Em março, a Confederação Nacional dos Dirigentes de Lojistas ajuizou a Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.384 contra a cobrança do diferencial de alíquota das empresas do Simples. A tese defendida pelos representantes dos lojistas é a de que, de acordo com a Constituição, o estado destinatário só poderá tributar parcialmente a operação interestadual se o comprador do produto vendido em outro estado for pessoa jurídica igualmente contribuinte de ICMS e comprar os produtos na qualidade de consumidor final. Do contrário, só se poderia tributar na revenda. A ação está sob a relatoria do ministro Eros Grau e ainda não foi julgada.
Com a mudança legal, o Executivo paraense resolveu ampliar sua base de arrecadação. “Quando o destinatário da mercadoria for contribuinte optante pelo (…) Simples Nacional, o imposto a ser antecipado será calculado mediante a aplicação da diferença entre a alíquota interna e a interestadual, aplicáveis às pessoas jurídicas não optantes pelo sistema, sobre o valor da operação constante do documento fiscal”, prevê o artigo 2º do Decreto 1.717/2009.
O problema é que os pequenos empreendimentos que recolhem tributos pelo Simples não podem se creditar nas entradas, o que, no caso de um imposto não cumulativo como o ICMS, faz a balança pender desproporcionalmente para o lado do fisco. É ainda pior quando um decreto, e não uma lei, institui o regime mais dispendioso.
Mutilação de princípios
A inconstitucionalidade é flagrante, segundo acórdão das Câmaras Cíveis Reunidas do Tribunal de Justiça paraense. No dia 13 de abril, a instância de segundo grau concedeu liminar ao analisar recurso de uma empresa de cosméticos, enquadrada no Simples como “empresa de pequeno porte”.
“Não se pode admitir que a Administração Pública — a quem o princípio da legalidade se impõe com muito mais rigor, já que o Administrador só pode fazer aquilo que estiver estritamente previsto na lei — seja a primeira a violá-lo, instituindo ou majorando exações tributárias por outros meios que não a lei, criando com isso situações de flagrante ilegalidade”, diz a juíza Gleide Pereira de Moura, convocada no colegiado e relatora do Mandado de Segurança da Minas Cosméticos Ltda.
A decisão ainda impede que o fisco estadual apreenda mercadorias da empresa, cobre multas ou autue, inscreva em dívida ativa ou dificulte a emissão de certidões negativas de débitos em virtude do não recolhimento da antecipação.
De acordo com o advogado da empresa, Leonardo Menescal, do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados, o regime instituído pelo fisco paraense gera bitributação do imposto mercantil. “No Simples, o ICMS está embutido no pagamento unificado. A ideia era diminuir carga tributária”, diz. Ele afirma que já entrou com um novo Mandado de Segurança em nome de outras 14 associações para suspender as cobranças.
A instituição do regime por meio de decreto, e a impossibilidade de as pequenas empresas se creditarem do imposto, segundo o tributarista, violam os princípios da legalidade e da não cumulatividade. O prazo de vigência foi outro problema. “A cobrança começou 60 dias depois da publicação da norma, o que fere também o princípio da anterioridade”, explica Menescal. Além disso, segundo ele, como o Decreto 1.812/2009, que alterou disposições da tributação sobre os pequenos empresários, foi editado em julho, mas para produzir efeitos a partir de junho, afrontou também o princípio da irretroatividade dos tributos.
Suspensão de Segurança 4.134 (STF)
Mandado de Segurança 2010.3.004645-8 (TJ-PA)
(FONTE:CONSULTOR JURÍDICO)